De vez em quando é preciso despoluir a visão, descansar "nossas retinas tão fatigadas", para lembrar o verso de Drummond. Mas as ocasiões são raras. No mundo saturado de imagens, poucas delas valem a pena. Pois há uma chance...NOSSA MÚSICA de Jean-Luc Godard. Pouco importa se dizem que Godard é difícil. Seu cinema é, em primeiro lugar, apenas isso: um estímulo para a visão. Cansado da banalidade, nosso sentido mais castigado pela modernidade agradece.
Veja, por exemplo, a primeira parte do filme. Ele nada tem de repousante, no sentido convencional do termo. São minutos de imagens intensas, em cores e preto-e-branco, no suporte película e vídeo. Nesse momento você relembra que cinema é movimento, mas é também pintura. E descobre porque 99% do que se produz parece descartável: falta cultura visual, quesito no qual Godard dá show.
Bem, o filme, nesse princípio, fala do sofrimento humano, da beleza trágica da violência, essa que tanto pode ser explorada por um Tarantino da vida, como pode também aparecer em forma ética na paleta de um Godard. Nele, a violência nunca é amenizada, pasteurizada, de forma a se tornar palatável e portanto objeto de entretenimento. É o sofrimento humano, como na série de Goya sobre os Horrores da Guerra. Porque é bem de guerra que se trata num primeiro momento. O cenário desse inferno está em Sarajevo.
E não se fala em inferno no sentido figurado, apenas, pois Nossa Música é um tríptico, estruturado como a Divina Comédia, de Dante: Inferno, Purgatório, Paraíso. Então, o Inferno, em Sarajevo, que simboliza a guerra de uma maneira geral. Depois, o Purgatório, o sofrimento "suportável". No filme, ele está povoado pelas intolerâncias, entre elas a que opõe judeus e palestinos. O próprio Godard aparece no filme, no papel dele mesmo, um diretor que percorre o mundo dando aulas sobre cinema.
No mundo do horror, o cinema parece supérfluo. No do sofrimento tolerável, esse do dia-a-dia, talvez ele tenha algum lugar. E no Paraíso, no mundo da alegria? Bem, para Dante, o paraíso era a presença de Deus, o amor que move o Sol e as outras estrelas. Para Godard, essa felicidade pura se transforma em paródia, um paraíso irrisório, habitado por seres estranhos e vigiado por marines americanos.
NOSSA MÚSICA é isso: um ensaio visual, mas também filosófico e cinematográfico, que pergunta pelo nosso lugar no mundo. O que foi feito do nosso mundo e do homem? O cinema (a arte) pode ser uma resposta, ou apenas um consolo? Num certo momento ele diz que o cinema é "essa luz dirigida à nossa noite". Não se poderia responder de maneira mais bela.
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Por Luiz Zanin Oricchio (Estado)
14.11.07
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