14.11.07

Marcas da Violência

O fato de David Cronenberg escolher como tema e como alvo a genealogia da América em MARCAS DA VIOLÊNCIA (A HISTORY OF VIOLENCE), não era exatamente algo esperado.

Um cineasta metafísico do corpo, das pulsões, das torções da psique humana, o canadense havia até então se mantido sistematicamente distante dos "grandes assuntos". Apesar de o seu título original (uma história de violência) ser uma alusão bastante pronunciada à história dos Estados Unidos, ninguém queria acreditar, antes de assistir a este filme, que ele abordaria a valer o tema do pesadelo escondido por baixo da superfície do sonho americano.

Contudo, enquanto Cronenberg resolveu explorar esta matéria, e enquanto, para encená-la, ele lança mão de um estilo clássico de uma elegância rara, ele também a amarra de maneira inextricável com as suas obsessões íntimas, e deixa aflorarem detalhes que remetem de maneira implícita ao universo de horror das suas séries B dos anos 70.

Um filme de encomenda, que se insere dentro da grande tradição de Hollywood, MARCAS DA VIOLÊNCIA é também uma das obras as mais ambiciosas do seu autor, e uma das mais belas de toda a sua carreira.

Toda a trama é construída de uma só vez numa cena que ocorre no final da primeira meia-hora. Até então, o personagem que está de pé por trás do balcão do bar, Tom Stall (encarnado pelo muito surpreendente Viggo Mortensen), foi apresentado como sendo um pai de família de boa índole, doce, atento para as necessidades dos seus filhos, apaixonado pela sua mulher, da qual se sabe apenas que ele a conheceu quando já tinha acumulado certa vivência.

Ele é um americano tal como o espectador sabe que não existe nenhum desse tipo, que leva uma vida modesta num restaurante freqüentado pelos moradores de uma pacata cidade pequena do Meio-Oeste. Num piscar de olhos, ele vai se tornar um desses heróis do cotidiano cuja pequena história vem alimentar a cada dia que passa o grande sonho da nação.

No momento em que ele se preparava para fechar o restaurante, chegam dois homens que vão até o balcão. Estes já haviam sido apresentados durante os primeiros minutos do filme. Eles são dois matadores sem escrúpulos, capazes de assassinar uma criança apenas fitando-a olhos nos olhos.

Num tom gélido, com uma violência paralisante, eles exigem que lhes seja servido um café. No espaço de alguns segundos, eles impõem o terror no lugar. E, no exato momento em que eles se preparam a cometer uma chacina, o gentil patrão arrebenta a cafeteira contra o rosto de um deles, neutraliza o outro, e elimina os dois homens com a precisão de um matador profissional.

Antes de passar para a cena seguinte, que mostrará o herói do dia boquiaberto diante de uma televisão na qual todos os canais rivalizam para ver quem tecerá os louvores mais rasgados ao seu respeito, Cronenberg mostra a matança a partir de um ponto de vista lateral, deslocada na narrativa principal, com um close sobre o rosto ensangüentado de uma das duas vítimas, desfigurado pelo impacto da bala.

Esta furtiva inserção de um realismo violento surge para contrariar o classicismo da encenação e vem confirmar a idéia de que um fato estranho, algo anormal, acaba de acontecer. Alguma coisa na qual ressoam ecos da primeira cena, quando Tom Stall tentava tranqüilizar a sua filha que havia sido despertada por um pesadelo, e que ele lhe garantia que os monstros não existem.

A irrupção de uma violência bruta dentro de um meio-ambiente policiado é o motivo do filme. Ela é o motor do seu ritmo demente que desregula praticamente cada uma das cenas. Quando esta violência parece estar ausente, ela continua rondando, latente, como uma ameaça, sugerindo que o caos pode aparecer a qualquer momento.

Ela toma conta dos corpos: daquele do filho de Tom Stall, por exemplo. A discussão ríspida que este trava com um chefe de gangue no seu colégio transforma-se, na altercação seguinte, numa saraivada de socos que faz lembrar as cenas mais duras de CASSINO, de Martin Scorsese, ou O PAGAMENTO FINAL, de Brian De Palma.

A mãe (Maria Bello, perfeita) também acabará sendo vítima desta violência. Apaixonada até à loucura pelo seu marido, fantasiada de dançarina lúbrica de cabaré para alimentar as suas novas fantasias, ela acaba lutando com ele como se fosse contra um estuprador, nos degraus da escada de madeira da casa, numa cena magistral em que as suas investidas selvagens se transformam numa relação sexual de uma brutalidade inédita no cinema.

A partir desta cena, o filme já ultrapassou uma espécie de ponto sem retorno. A chegada de um mafioso da Filadélfia (encarnado por Ed Harris, numa atuação extraordinária), cujo rosto está desfigurado pela metade, e que alega ter reconhecido Tom Stall na televisão como sendo aquele que, na sua juventude, lhe teria arrancado um olho com golpes de arame farpado, acaba ancorando definitivamente a intriga num terreno fortemente esquizóide, no mais puro estilo de Cronenberg.

O homem em questão irrompe no restaurante com a mesma carga de agressividade que os dois dementes do início. Na Filadélfia, afirma o visitante, Tom Stall respondia pelo nome de Joey Cusack. Tom nega. O filme explora então a esquizofrenia de um personagem cujo passado recalcado ressurge de maneira vertiginosa.

A última cena, a mais terrível, é uma tentativa de juntar e colar os cacos do sonho pulverizado, de retornar para trás, antes da explosão final. Quando se trata de Cronenberg, tudo passa pelo corpo. Este filme não é nenhuma exceção: a violência marcou e deixou os seus estigmas em cada um dos personagens, e, daqui para frente, eles passam a ser obrigados a sobreviver, arrasados pelo peso da sua verdade.

Spoiler Rating: 89
LBC Rating: ~

Por Isabelle Regnier - Le Monde

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