10.8.07

Um Menino de Verdade...

estória do pequeno boneco e a sua busca para se transformar num menino de verdade é o triunfo da narração de uma estória com moral. Será que a cultura popular já produziu uma parábola mais inesquecível do que esta, que versa sobre os perigos de se contar uma mentira? A estória é simplesmente maravilhosa. Ela contém elementos que seria aperfeiçoados pela formula Disney, mas a linha principal do conto tem um diabólico e audacioso argumento para atingir as crianças.

A chave é a vontade de Pinocchio de se transformar “num menino de verdade”, não somente um boneco de madeira que pode andar e conversar sem cordéis. Numa analise mais profunda, todas as crianças querem ser reais e duvidam que possam ser. Uma das sugestões do filme é que deixemos para Pinocchio a incumbência de se transformar em um ser humano por conta própria. Ele tem a figura paterna suprida por Gepetto, o bondoso construtor de bonecos, mas que é muito esquecido e pode ser facilmente enganado. E temos o Grilo Falante que se candidata para ser a consciência de Pinocchio, e consegue, sem ser muito bem qualificado para isso. O que Gepetto, a Fada Azul e o Grilo Falante fazem por Pinocchio é oferecer-lhe uma visão – uma idéia do que ele deveria se empenhar em buscar.

As crianças sabem que têm que ser boas e sabem que são fracas quando tentadas. Pinocchio assume o lugar de todas elas quando deixa de ir à escola e se permite ser entretido por João Honesto, e Gideão. A guinada aparece como uma surpresa: o filme abre com a suave melodia de “When You Wish Upon a Star”, e Gepetto na hora de dormir brinca com o boneco e conversa com Figaro e Cleo. A mágica visita da Fada Azul é encantadora. O grilo falante é um novo e bem disposto amigo. E de repente Pinocchio é agarrado por dois vigaristas que o vendem para Stromboli, o vil apresentador de um show de marionetes. Ele se descobre como um boneco artista, que canta e dança sem ajuda de cordas (“Eu não tenho cordéis”). O Grilo Falante que não era um grande analista dá de ombros e fica imaginando que se Pinocchio é uma estrela, não precisa mais dele. (“O que um ator quer com uma consciência, afinal?”). Por que será que o Grilo falante não sabe como Gepetto ficará preocupado? Talvez pelo fato de grilos não entenderem o amor humano.

Pinocchio tenta fugir, mas é aprisionado numa gaiola por Stromboli. Quando é visitado pela fada Azul (numa das cenas mais bonitas já vistas num filme), conta-lhe as suas mentiras e descobre que o seu nariz cresce, e cresce, e cresce até que ele cria galhos e folhas e um ninho com dois passarinhos! Olhe para as crianças à sua volta durante esta cena, e você verá que ficam completamente fascinadas pela confirmação das suas culpas e dos seus medos.

A Fada Azul suspende temporariamente o castigo, mas Pinocchio se mete novamente em encrencas, escudado por João Honesto e levado á força para a Ilha dos Prazeres, onde pequenas crianças fumam, jogam bilhar e são transformadas em mulas para trabalhar nas minas de sal (“Dê suficiente espaço para um menino mau e logo ele fará de si mesmo um tolo”). Por meio do veneno do tabaco e dos seus pecados, crescem as orelhas, cascos de animais e um focinho; quantas crianças decidiram naquele momento nunca fumar?

Pinocchio e o grilo Falante fogem e chegam afinal até Gepetto, somente para descobrir que o velho homem desaparecera. Pinocchio se sente abandonado, e na platéia os olhos das crianças crescem espantosamente e ficam úmidos. A Fada Azul, a suprema solucionadora de problemas, manda um pombo-correio avisando que Gepetto está aprisionado na barriga de monstro, a baleia. Isto nos conduz à grande seqüência final, onde finalmente Pinocchio se põe a prova. O ápice é uma cascata de imaginação visual. Todo mundo se lembra da baleia tentando fustigar Pinocchio depois que ele acende uma fogueira dentro dela para fazê-la espirrar. Todavia, esta ação é precedida por uma longa e mágica seqüência na qual o boneco e o grilo andam pelo chão do oceano, cruzando com peixes, flores, do mar, corais e outras criaturas.

PINOCCHIO trata do livre-arbítrio: A Fada Azul permite que Pinocchio exista, mas com alguns cordões ainda presos a ele. Não tem “alma” e, portanto, embora respire, não vive. E apesar de se esforçar, Pinocchio logo é desviado do seu caminho, incapaz de resistir, porque lhe falta uma convicção moral humana, a alma...Pinocchio só se envolve em problemas, porque deixa de ouvir a consciência imposta à ele – O Grilo Falante – para seguir seus próprios instintos.

Sem duvida, ao ser projetado através das lentes do psiquismo de Disney, PINOCCHIO revela uma forte embasamento fundamentalista: A luta pela auto-redenção e o destino infernal à espera dos que não tem força de espírito para resistir aos demônios inerentes ao prazer. Em última analise, o filme se transforma em uma jornada pelo íntimo de Disney, envolvendo a questão de sua própria filiação e, portanto, de seu “eu real”. Mas para Disney, ao contrário de seu equivalente de madeira, a busca da identidade “real” continuaria...

E se Disney focalizou, em BRANCA DE NEVE, a luta de duas figuras maternais, a “boa” Branca de Neve, a mãe “adotiva” de sete anões, em oposição à imperiosa Rainha Má, sua madrasta, em PINOCCHIO, o conflito foi transferido para duas figuras paternas opostas, o “bom” Gepetto, e o “mau” titiriteiro Stromboli.

PINOCCHIO é uma parábola para crianças, e muitas gerações cresceram com a lembrança das palavras “deixe a sua consciência guiá-lo” e “Uma mentira cresce e continua crescendo até que fica tão evidente como o nariz em seu rosto”. O poder do filme se origina, na minha opinião, do fato de ele realmente tratar de alguma coisa palpável. Não se trata somente de uma fabula forjada ou de um inconseqüente conto de fadas, mas de uma narrativa com reverberações em profundos arquétipos.

E isso não é mentira.

Spoiler Rating: 86
LBC Rating: ~

Por Roger Ebert - A Magia do Cinema

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