25.8.07

Navalha na carne

Nos momentos iniciais de VERA DRAKE - filme de Mike Leigh, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2004-, o personagem-título, uma dona-de-casa arrumadinha da classe média, interpretada por Imelda Staunton, prepara o chá para o marido, Stan, e os filhos já crescidos, Sid e Ethel. Estamos em 1950, e a rotina que Vera segue em seu apertado apartamento parece uma relíquia de uma era desaparecida.

Depois de abrir a sacola de compras que pende de seu braço e de ter trocado seu pesado casaco de lã por um avental florido, Vera coloca a água para ferver, assobiando baixinho como se perdida em um mundo que ela mesma criou; Ethel também pendura o casaco e entra na cozinha para ajudar. "Oi, mãe", diz Stan alegremente à mulher, quando chega, expressando alívio por escapar do tempo cinzento que reina lá fora. "Vou colocar os chinelos."

Rituais domésticos como esses sempre foram momentos de tensão insuportável nos filmes de Mike Leigh, de A FESTA DE ABIGAIL (1977) aos fogos de artifício emocionais que iluminam o churrasco que serve como clímax de SEGREDOS E MENTIRAS (1995). Mas o que é notável sobre essa cena da vida comum, silenciosa e unida dos Drake é que os ritmos da vida em família são capturados com tanta precisão que quase nos sentimos intrusos.

É uma imagem de contentamento doméstico criada por um diretor cujos filmes repetidamente exploraram as dolorosas realidades da vida familiar. Mas Vera, a mulher de "coração de ouro", tem lá seu repertório de segredos e mentiras.

Sem que a família o saiba, ela executa abortos ilegais para "garotas em dificuldades", pondo fim a gestações indesejadas com o mesmo espírito de boa vizinhança que a leva a convidar para um chá o tímido Reg, que vive em um apartamento vizinho, quando ela descobre que ele está vivendo a pão e água. Dezessete anos antes que o aborto fosse legalizado no Reino Unido, Vera executa a tarefa porque "ninguém mais o faz".

À sua maneira discreta, Mike Leigh é um cineasta tão político quanto Ken Loach, e "Vera Drake" é um retrato preciso das injustiças do sistema de classes. Filho de um médico e de uma parteira, a quem o filme é dedicado, Leigh pinta um retrato sombrio do sistema de saúde britânico nos anos do pós-guerra. O único recurso de Vera para ajudar sua mãe doente parece ser um suprimento de chá e sardinhas.

Os abortos que ela realiza para mulheres da classe operária contrastam com a experiência de Susan Wells, uma moça de classe média alta que engravida depois que seu namorado a estupra, mas conhece as pessoas certas e dispõe dos cem guinéus necessários para conseguir um leito em um clínica profissional.

Ao contrário dos filmes anteriores de Leigh, aqui o desgaste da vida familiar é causado de fora -pela polícia, pela desaprovação dos vizinhos, pelo Judiciário, no assustador trecho final do filme, em que Vera é levada a julgamento. Um exame impiedoso de como a sociedade dos anos 50 atribuía intenções criminosas a uma mulher bem-intencionada, VERA DRAKE mistura história social e tragédia feminista de forma que lembra LONGE DO PARAÍSO, de Todd Haynes.

Spoiler Rating: 90
LBC Rating: ~

Por Edward Laurenson

Nenhum comentário:

by TemplatesForYou
SoSuechtig,Burajiru