22.8.07

"Bicicletas" encanta ao reverênciar valores do passado

AS BICICLETAS DE BELLEVILLE revela um humor em extinção. Trata-se daquela comédia física elegante, de gags paulatinas e inventivas, de pouco ou nenhum diálogo, mas que esconde em suas entrelinhas uma eloqüente visão crítica do mundo. É o humor de Monsieur Hulot, a criação mais célebre de um mestre do gênero, o francês Jacques Tati (1909-1982). Se esse tipo de riso caiu em desuso, talvez seja pelo fato dos dias grosseiros atuais não aceitarem mais aquela defesa desengonçada da ingenuidade, contra o consumismo e a modernização insípida do cotidiano. Felizmente, a influência de Jacques Tati atravessa a mise-en-scène, em decisões como a de realizar um filme baseado quase exclusivamente em ruídos e música, e não apenas na nostalgia. Consegue cativar o mundo e ainda ser indicado a 2 Oscars, ainda há salvação para a humanidade.

Trata-se de uma obra escorada na tradição de Tati. Repare na trama: depois de treinar com apito em punho o seu neto ciclista para a famosa Tour De France , a velhinha Madame Souza o vê seqüestrado durante a corrida por mafiosos ítalo-americanos; atravessa, então, o oceano acompanhada por seu cachorro Bruno em um pedalinho, chega a Belleville, consegue o auxílio de idosas trigêmeas cantoras de cabaré e tenta libertar o ciclista escravizado numa arena clandestina de apostas.

Estreante em longas-metragens, o animador Sylvain Chomet põe em prática tudo o que aprendeu em quarenta anos de vida e duas décadas de devoção aos quadrinhos e aos desenhos. Assim, o visual já espanta, de cara, pela mistura impressionantemente harmoniosa entre o tradicionalismo artesanal e os artifícios tridimensionais. Em poucas seqüências, AS BICICLETAS DE BELLEVILLE abrem o jogo. É o tempo que precisamos para nos familiarizar com os desenhos do filme, onde os traços criam personagens e paisagens que ora parecem distorcidos, ora retorcidos, mas em todo caso oferecem uma imagem conturbada do humano.

A sua temática nostálgica também se evidencia logo na introdução: um número de cabaré típico dos anos 30 é desenhado com os mesmos traços em preto-e-branco dos clássicos da época. Fica igualmente latente a sátira aos norte-americanos gordos e comilões - idéia que Chomet já desenvolvia no seu curta anterior, "La Vieille dame et les pigeons" (1998) - e aos tipos consagrados de Hollywood, como os mafiosos e os seus capangas motorizados. Sobra até uma gozação com a chuva de sapos de MAGNÓLIA (de Paul Thomas Anderson, 1999).

E a animação não se limita a resgatar o tema clássico de Hulot, a aversão à selvageria industrial. Chomet faz questão de citar os trabalhos de Tati. No quarto das trigêmeas - as triplets do título original -, o pôster de AS FÉRIAS DO MONSIEUR HULOT (1953) está pendurado na parede. Na cama, as irmãs se esbaldam de rir assistindo a ESCOLA DE CARTEIROS (1947), um dos melhores curtas do diretor. E a engenhoca que mantém ciclistas pedalando na arena de apostas foi evidentemente inspirada nas bicicletas adaptadas que ensinam os carteiros a pilotar no curta.

"Mas se sobram referências e curiosidades, o que faz da animação algo distinto?", você pode perguntar. Pois em nenhum momento as citações suplantam aquilo que Chomet tem de mais autoral: as situações originais, as piadas inventivas, o carinho pelos personagens, a técnica bem lapidada e a narrativa tensa. Além disso, o animador toma tão bem a apologia da simplicidade para si que torna As Bicicletas de Belleville singular.

O fato é que o filme --estranho no começo, talvez devido ao inusitado dos desenhos, à estridência dos personagens--, na medida em que se impõe ao espectador, tende a seduzi-lo e a encantá-lo. Pode não salvar o humor ingênuo, mas ao menos alimentará muito bem os seus fãs.

Spoiler Rating: 87
LBC Rating: ~

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