14.8.07

Em Busca da Identidade

Assim como Flaubert, ao assumir seu lado madame Bovary, Hans Christian Andersen poderia ter dito - sem ser contestado - que a pequena sereia criada por seu gênio era ele mesmo. A exemplo de sua sereia, Andersen sentia-se um peixe fora d'água. Cobiçava o príncipe, mas sabia que só um ato de bruxaria poderia transformá-lo numa princesa de belas pernas, digna de ser cobiçada por um nobre bonitão. Homossexual, pobre, filho de sapateiro e mãe lavadeira, alto, desengonçado e efeminado, só lhe restava uma arma para lutar contra a preconceituosa sociedade dinamarquesa do século 19: provar que o patinho feio era capaz de desafiar - ou quem sabe conquistar - o mais disputado dos cisnes.

De certa forma, é preciso conhecer a história pessoal de Andersen para entender a razão de tantos fracassos amorosos em suas contos infantis, que nem de longe foram escritas pensando nos pequenos.

Num de seus contos mais populares, “O Soldadinho de Chumbo”, o brinquedo, militar perneta, apaixona-se por uma bailarina que julga igualmente deficiente, por estar sempre com uma das pernas levantada. Afastado da amada por um golpe do destino, vai parar num lago durante uma enxurrada, engolido por um peixe e, milagrosamente, volta à casa de seu dono, que o despreza, atirando-o ao fogo da lareira. O vento leva a bailarina para a mesma fogueira, juntando-a ao derretido amado. O que poderia ser visto como um sacrifício amoroso pode também ser interpretado como uma saída trágica para o impossível relacionamento entre amantes de natureza diferente (o soldadinho é de chumbo e a bailarina, de papel).

Andersen sempre perseguiu a aprovação de seus pares. Curvou-se voluntariamente a uma sociedade que tinha destinado seus pais a uma condição inferior e fez como o narcisista nobre de seu conto “As Roupas Novas do Imperador”, que ilustra como nenhuma outra como um homem sucumbe à pressão social. Nela, um imperador 'fashion', que tem uma roupa para cada hora do dia, é enganado por dois costureiros espertalhões. Eles garantem não só ser capazes de desenhar um modelito único como transformar seu usuário num homem invisível - algo muito conveniente para reis paranóicos e gays enrustidos.

Se o rei da história estava nu - e ainda assim marchou até o fim na ilusão de estar usando roupas lindas, proibidas para pobres mortais -, Andersen, seguindo seu vaidoso exemplo, desafiou publicamente até filósofos como Kierkegaard, mas não escapou do complexo de castração. A Pequena Sereia, disposta a suportar a dor de uma mutilação (cortar o rabo) para se tornar mortal e casar com o príncipe, é o próprio Andersen distante de suas origens e falsamente tolerado por seu brilho intelectual. Pobre patinho feio. Hoje estaria usando antidepressivos.

A PEQUENA SEREIA, da Disney, bebe na fonte de Andersen para contar a estória de Ariel, que desafia o pai, Tritão, e faz um pacto com a sinistra feiticeira do mar, Úrsula, para conseguir realizar seu amor por um belo príncipe. O desenho já sinalizava, em 1989, para a revolução que iria ocorrer na animação, nos anos 1990, com as técnicas tradicionais de desenho sendo substituídas pelas infinitas possibilidades oferecidas pela digitalização.

Andersen sabia que o ingrediente principal das estórias era a magia, elemento indispensável, sem o qual, a narrativa perderia interesse. Porém, evitou atribuí-la a uma personagem secundária, o auxiliar mágico, responsável, no conto de fadas tradicional, pela segurança do herói e pelo sucesso de suas ações. Por isso, colocou a magia na interioridade do protagonista, tornando-a um ser fantástico, mas, mesmo assim, problemático. É o caso de sua criação mais conhecida, o patinho feio.

Porque possui propriedades humanas – fala, tem sentimentos, sofre com a rejeição –, ele se mostra mágico, isto é, incomum; além disso, experimenta uma metamorfose, passando do estado de “pato” (feio e inadequado) para o de “cisne” (belo e atraente). Contudo, sua vida é marcada pela mesma fragilidade experimentada pelos figurantes do conto de fadas; e, como eles, vai a busca da auto-afirmação, para poder descobrir seu lugar no mundo.

A expressão da fragilidade do ser humano encontra sua melhor expressão nas narrativas de Andersen, que a corporificou em seres especiais, como a pequena sereia e o soldadinho de chumbo, apaixonados ambos por figuras inacessíveis, distância que se amplia à medida que a narrativa se desenvolve. Andersen deu novo alcance à fantasia, indicando que, às vezes, apenas pela imaginação e criatividade podemos encontrar uma saída para nossas dificuldades.

Spoiler Rating: 83
LBC Rating: ~

Por Diana e Mário Corso (Fadas no Divã) e redação da Folha de São Paulo

Nenhum comentário:

by TemplatesForYou
SoSuechtig,Burajiru