14.7.07

Ratatouille

Como toda animação da Pixar - e da Pixar/Disney -, Ratatouille, de Brad Bird, possui camadas de leitura. As crianças, que, desde o lendário Mickey Mouse, já viram muitos ratos na tela, poderão divertir-se com mais essa criaturinha da sarjeta que sonha ser chef. A situação é, em si, absurda, mesmo para quem quiser pensar realisticamente que já é um absurdo um rato falante na tela. Este é a vergonha da família, com seu paladar refinado que põe o grupo em perigo. No limite, ele é separado da família e vai cair no esgoto, sendo levado pelas águas até... Paris, a capital da gastronomia.

O rato é o protagonista da história de Ratatouille e é muito engraçado esse roedor que, contra tudo e todos, quer mostrar que é o melhor de fogão. O acaso o leva ao restaurante, hoje decadente, cujo proprietário anterior havia escrito um livro com o sugestivo título de 'qualquer um pode cozinhar'. O crítico de gastronomia o odiava por isso. Porque, sendo um amante da boa cozinha e das iguarias elaboradas, ele não pode aceitar que todo esse refinamento esteja ao alcance de qualquer um. O crítico considera a gastronomia uma forma de arte e, como tal, espera que o chef seja um artista.

São os dois personagens principais, mesmo que a participação do crítico seja relativamente curta dentro da trama. O rato faz a ponte de Ratatouille com as crianças. O crítico, por mais divertida que sua figura sinistra possa ser para o público infantil, destina-se aos adultos. Os demais personagens fazem a ligação entre os dois, tanto os animais quanto os humanos. O rato vai precisar de um aliado e ele será o ajudante de cozinha desastrado, que a gente descobre ser filho do antigo proprietário e, portanto, o dono do estabelecimento. Oprimido pelo chef, que não conhece sua identidade, o garoto recebe a tarefa de se livrar do rato, quando ele é descoberto na cozinha. Os dois fazem um pacto e, escondido no chapéu alto de chef, o rato é quem dá as cartas na cozinha, para que o outro desfrute a fama de ser o melhor. Isso, naturalmente, até o esperado confronto do chef com o crítico, para o qual converge toda a estrutura narrativa de Ratatouille, como a de Procurando Nemo, outra magistral criação da Pixar/Disney, que convergia para o reencontro do peixinho e seu pai que atravessa o oceano para localizá-lo.

Há algo de profundamente belo, que uma criança talvez não tenha condições de avaliar, embora convenha não subestimar a sensibilidade do público infantil, apenas a sua falta de informação (que também acomete uma parcela do público adulto, é verdade). Há quase cem anos, num dia de 1908, faltando pouco para o Ano-Novo de 1909, um escritor que haveria de se tornar a figura dominante do romance francês do século 20 foi tomar chá na casa de uma amiga. Marcel Proust sonhava escrever um grande romance. Os sete livros que compõem Em Busca do Tempo Perdido mostram um personagem - o Narrador - que busca inutilmente a felicidade na vida mundana e na contemplação da arte. Ele a descobre no poder de evocação da memória que vai reunir passado e presente numa sensação reencontrada, quando o Narrador molha a madeleine (um biscoito) na xícara de chá, cujo sabor lhe evoca a infância.

Proust teve essa sensação e a reproduziu em seus livros. Luchino Visconti e Joseph Losey sonharam adaptar o monumento literário do grande autor para reencontrar esse momento que a animação agora reproduz, por meio do crítico. Tudo o que se pode dizer sobre a técnica de Ratatouille e a história da Pixar/Disney você encontra nos demais textos que compõem a edição. O respeito pela diferença, radicalizado num ser tão abjeto como o rato, é um tema tradicional da animação. Cria cenas divertidas - os ratos que tomam conta da cozinha, devidamente higienizados, para ajudar o herói. O tema é outro. Nem todo mundo pode ser um grande artista, mas a arte surge onde menos se espera. Ratatouille é sobre um rato que sonha ser chef e muito mais. É sobre memória, sobre arte e vida.

Spoiler Rating: 91
LBC Rating: 77

Por Luis Carlos Merten - Estado de São Paulo

2 comentários:

Ademar de Queiroz (Demas) disse...

A cena do crítico saboreando o "ratatouille" já é clássica. O filme é um primor de animação. Surpresa total: não imaginei que eu fosse gostar tanto quando vi o trailer. Ah, e o curta "Lifted" que precece o longa é bem divertido, né?
Abração

Marfil disse...

Aliás, Demas, "Lifted" foi indicado ao Oscar esse ano...A PIXAR sempre emplaca um candidato nessa categoria!

"Ratatouille" é o melhor filme do ano até agora!

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SoSuechtig,Burajiru