
Grande Helen Mirren. Há cinco anos, já reverenciada como atriz excepcional - coisa de que ninguém duvidava, depois de havê-la visto no cerimonial teatralizado de O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e O Amante, de Peter Greenaway -, ela esteve em São Paulo, acompanhando anonimamente o marido, o diretor Taylor Hackford, que veio promover o lançamento de Prova de Vida, o drama romântico estrelado (e estragado) por Meg Ryan e Russell Crowe, cujo romance (real) terminou sendo mais importante que o do filme. Helen andou livre e solta pelo hall e pelos corredores do Hotel Crowne Plaza, sem que ninguém se interessasse de saber quem era aquela mulher classuda. Após a indicação para o Oscar - e o favoritismo anunciado pelos prêmios que recebeu -, Helen não poderia pisar na cidade sem que um batalhão de repórteres e fotógrafos a perseguissem. E ainda tem gente que quer subestimar a importância do prêmio da Academia de Hollywood. Esteticamente, até pode ser, mas como evento midiático, nunca.
Helen Mirren havia feito Elizabeth I numa minissérie de TV. Na seqüência, fez o filme de Stephen Frears sobre Elizabeth II. Pelos dois papéis, ganhou duas vezes o Globo de Ouro - como melhor atriz de TV e melhor atriz de drama para cinema. A Elizabeth II de Helen é uma jóia de rigor, mas, se é possível afirmar-se isso, sua Elizabeth I é melhor ainda, uma criação totalmente ficcional de uma atriz que sabe usar todo o arsenal de recursos de que dispõe - a voz, o corpo, os gestos, os olhares, tudo. A Elizabeth I de Helen era a rainha tirana, testando os limites do seu poder. Sua Elizabeth II é uma rainha em crise. Isso abre espaço para que o filme, embora se chame A Rainha, seja também (ou até mais) sobre Tony Blair.
Antes de se lançar a este filme, Stephen Frears fez, para TV, uma minissérie sobre o premier britânico e a forma como pavimentou seu caminho para o poder. Pode-se explicar facilmente o interesse do autor pelo personagem - Frears adora filmar relações perigosas, e não por acaso, fez o filme que leva este título -, mas é bom lembrar que, em seus filmes dos anos 80, ele foi um crítico contundente da Inglaterra dos excluídos que a Dama de Ferro, a então primeira-ministra Margaret Thatcher, desenhava com sua rígida política neoliberal. Um premier trabalhista como Blair deveria iniciar uma nova era, mas ele alinhou seu governo à geopolítica do presidente George W. Bush. Virou saco de pancada da Inglaterra (e de Frears).
A Rainha, o filme, focaliza um período bastante tumultuado da vida de Elizabeth II, aquele que se seguiu à morte da princesa Diana. Lady Di, por seu comportamento, não era exatamente uma figura palatável para a rainha. As circunstâncias de sua morte, muito menos. Mas Elizabeth II revelou-se, diante da morte, um caso singular de insensibilidade pública. Lady Di era amada pelos ingleses, era a chamada 'princesa do povo'. O povo sentiu sua morte como se fosse um deles. O Palácio de Buckingham, e a rainha, se mantiveram à margem do sentimento popular. Frears mostra os esforços de Tony Blair para fazer a rainha mudar seu comportamento.
Jovem ainda, ele poderia ser apenas mais um dos primeiros-ministros com quem Elizabeth II conviveu desde que subiu ao trono, no começo dos anos 50. Mas, como Frears registra com sua câmera, o primeiro-ministro dos trabalhistas terminou sendo o homem que salvou a realeza num momento crítico. Seu comportamento, no episódio Diana, lhe aumentou a estima popular - o que ele perdeu agora, por causa do apoio a Bush que está impondo tantos sacrifícios humanos na guerra do Iraque. No final, a rainha pode agradecer a Tony Blair por sua intervenção, mas ela adverte que poderá ocorrer o mesmo com ele. Ela também era amada, até desagradar ao povo. O Tony Blair de A Rainha pode ser o bem amado , mas o quadro hoje é outro.
Como compor uma personagem como essa rainha que tem estado sob os holofotes a vida inteira? Helen Mirren se transforma na imagem de Elizabeth II vista num espelho. Colocadas lado a lado, seria difícil, talvez, saber quem é quem. Ela incorporou a exterioridade da rainha, mas isso é só metade do seu esforço. Era preciso iluminar também seu interior. Talvez seja impossível penetrar na mente da rainha, mas Helen e Frears oferecem uma interpretação fascinante dos seus motivos. Vão além - transformam a rainha numa cabeça dura, obstinada, e depois filmam seu recuo tático. É um exercício fascinante. Como Elizabeth I, Helen foi mais livre, pois, se temos registros iconográficos da rainha, não temos a sua figura em movimento, nem a sua voz, os seus gestos (exceto aqueles celebrizados pelo cinema). Em A Rainha, o modelo está sempre presente, e Helen o segue, como quem mimetiza o outro. A questão é ir além da exterioridade. É aí que entra o grande talento de Helen Mirren criando o interior daquela metade externa tão perfeita, tão impressionante.
Spoiler Rating: 95
LBC Rating: 71
Por Luiz Carlos Merten - Estado de São Paulo
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