
Daí o fato dos membros do Império Romano, os cavaleiros das Cruzadas e as entidades mais iluminadas do espaço sideral serem representados quase sempre por atores com sotaque britânico.
Assim, seus títulos nobiliárquicos devem ser grudados aos nomes como o insuportável "Academy Award Winner Fulano de Tal" ou, mais comum, "Academy Award Nominee José das Couves", que os locutores de trailers falam com aquela voz rouca e falsamente animada antes de anunciar o elenco de tal e qual filme.
Pois "Notas" tem tanto uma "Academy Award Nominee/ Winner" (Cate Blanchett, três vezes indicada, um Oscar) quanto uma "dame" que também é "Academy Award Nominee/Winner" (Judi Dench, seis vezes indicada, um Oscar).
O segundo pé atrás é o livro de Zoë Heller no qual o filme se baseia, "Anotações sobre um Escândalo" ("What Was She Thinking - Notes on a Scandal", Record, 2006). Apesar de ser ficção, guarda uma incômoda semelhança com um caso real.
Em 1997, a professora Mary Kay Letourneau, 34 anos, casada, com três filhos, se envolveu com um de seus alunos, Vili Fualaau, de 12, em Seattle, nos Estados Unidos. O caso foi coberto à exaustão pela imprensa, os dois se tornaram celebridades dos tablóides.
Ela foi condenada, cumpriu sete anos e meio e, assim que foi solta, em 2005, se casou com o menino, hoje com 22 anos. Pois bem, não é essa a história do filme/livro. Mas é quase.
A professora de artes Sheba (inglês para Sabá, como a rainha bíblica) se envolve sexualmente com um aluno menor de idade numa escola de Londres.
É descoberta por Barbara, uma professora prestes a se aposentar que não assume sua homossexualidade, mas tem em sua história uma outra grande paixão por outra jovem professora.
Solitária e observadora, usa o seu vasto tempo livre para escrever diários, nos quais conta detalhes da vida de sua gata velhinha e de tudo o que se passa ao seu redor. Quando descobre o caso da colega, percebe que o conhecimento da escapadela pode lhe dar o poder para tentar chantageá-la e, quem sabe, fazê-la se apaixonar por ela.
Sheba faz como Barbara quer, promete o que ela pede, que o caso seja rompido, e até inicia uma amizade com a veterana. Mas está envolvida demais tanto com o garoto quanto com sua vida familiar, às voltas com a filha adolescente e um filho com síndrome de Down, e não atende a todos os pedidos da amiga na hora em que ela quer. Daí virá o tal escândalo.
Pois o filme é bom. Muito bom. Principalmente por conta das interpretações da "ganhadora da academia" Cate Blanchett, como Sheba, e da dama Judi Dench, como Barbara. Some a isso o impecável Bill Nighy como o marido mais velho, e pronto.
Nighy, aliás, não é "sir" nem "indicado a" ou "ganhador de Oscar", mas um dos melhores atores britânicos hoje, com uma paleta de interpretação que vai da suavidade de "The Girl in the Café" (2005), como o diplomata reprimido, à comicidade de "Simplesmente Amor" (2003), como o impagável roqueiro decadente Billy Mack.
"Notas sobre um Escândalo" é dirigido por Richard Eyre, do ótimo "Iris", a história real da novelista Iris Murdoch e de seu marido, o também escritor John Bayley, e a luta do casal contra o Alzheimer, que acaba por tomar completamente a escritora. A interpretá-la está ela, a dama, Judi Dench.
A jornalista e escritora inglesa Zoë Heller já havia deixado claro que preferia que o roteirista Patrick Marber e o diretor Richard Eyre fizessem um "artefato completamente novo e interessante", em vez de tentar uma adaptação "dita fiel" do seu romance, "Anotações Sobre um Escândalo", lançado originalmente em 2003 na Inglaterra e que foi finalista do Booker Prize, mais importante prêmio literário britânico, no ano seguinte.
"O que quer que eles façam, meu livro continuará a existir como meu livro. Não tenho um sentimento de propriedade sobre o filme", disse a autora à Folha, quando seu livro foi publicado no Brasil, no ano passado. "Patrick Marber tem sido extremamente solícito e encantador ao longo de todo o processo. Nós nos encontramos várias vezes e tivemos conversas muito agradáveis e interessantes sobre o que ele estava fazendo."
Heller, no entanto, que chama a atenção para o fato de pertencer a uma "família de roteiristas", e que não teria estabelecido condições à adaptação, diz agora que tem sido um tanto difícil para ela se "conformar" com a versão de Marber e Eyre para Barbara, personagem vivida no filme por Judi Dench.
"Ela é infinitamente mais maligna e predatória do que a minha Barbara", reclama a escritora, que já se sentia "decepcionada" quando encontrava leitores que não tinham qualquer "simpatia" ou solidariedade com a personagem, cujas atitudes ambíguas provocam a reviravolta na trama.
"Num certo ponto, tem-se uma sensação desconfortável de como a verdade está sendo filtrada pela perspectiva excêntrica de Barbara", ressalta Heller, defendendo as várias facetas da personagem. "Pessoalmente tenho muito carinho por ela. Barbara é uma mulher muito solitária, amarga, rude e bem maluca. Mas que também deveria soar engraçada."
Nem tudo parece errado, porém, na adaptação que ora chega às telas. Heller acredita que, no fim das contas, a Barbara criada por Marber "realmente funciona". E que os desempenhos de Dench e Cate Blanchett são "enormemente talentosos".
"Eu não diria que elas são completamente fiéis aos personagens que escrevi. Mas são interpretações inteligentes e interessantes. Então estou perfeitamente contente."
Ressalvas feitas, Heller faz também alguns elogios a acréscimos que Marber fez à sua história. A escritora conta que gosta muito de algumas cenas inventadas pelo roteirista:
"Como a briga entre Sheba e o marido depois que ele descobre sua infidelidade, por exemplo. E também a passagem em quem Stephen aparece na casa de Barbara no dia de Natal. São cenas que enriquecem a dramaticidade da trama original."
Spoiler Rating: 87
LBC Rating: 63
Por Sérgio Dávila & Eduardo Simões - Folha de São Paulo
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